quarta-feira, 14 de junho de 2017

Na Cracolândia, o 'gestor' só mostrou ser mais do mesmo

     Vários prefeitos governaram São Paulo desde o surgimento das primeiras Cracolândias, nos anos 1990. Mas o descaso com os usuários de uma das drogas mais letais está longe do fim. E não é João Dória quem mudará esta situação, apesar de seu mandato ter apenas seis meses.
     Não mudará porque, para ele, o fim das cracolândias é uma questão de polícia e força, e não de saúde pública e inclusão social. Dória já comandou duas operações, com participação da tropa de choque da Polícia Militar, para expulsar dependentes do centro da cidade. Na primeira, no fim de maio, um prédio, que, segundo a Secretaria Municipal de Segurança, servia como ponto de venda e consumo, foi demolido sem os moradores serem avisados. Três deles ficaram feridos. E no último domingo, o alvo foi a Praça Princesa Isabel: barracas foram destruídas; colchões e cobertores queimados, deixando os usuários sem rumo e abrigo no frio da madrugada paulistana.

Insistindo no erro: Todas as operações feitas como a do último domingo por 
João Dória fracassaram em acabar com a cracolândia. 73% dos usuários de 
drogas do local não concordam com a forma que a Prefeitura lida com a questão.

     A Prefeitura apoia essas operações como “necessárias para coibir o tráfico”. Mas o que se vê não são apenas apreensões de drogas e prisões. O que mais se vê são abordagens condenadas pelo Ministério Público, Organização Mundial da Saúde e entidades de direitos humanos. Não há zelo com quem se encontra em clara vulnerabilidade social. Não há preocupação em combater o foco do problema por parte do prefeito, que prefere insistir em internações compulsórias, barradas pela Justiça.
   Segundo o Datafolha, 68% destes usuários são negros ou pardos, 56% só possuem ensino fundamental e 89% nunca receberam uma oferta de emprego sequer. O programa “De braços abertos”, adotado pela Prefeitura entre 2014 e 2016, ofereceu capacitação profissional, aulas de arte, moradia em hotéis e acompanhamento médico e psicológico. Elogiado pelo Conselho Mundial sobre Drogas na ONU, o projeto conseguiu que 88% dos 416. participantes reduzissem em, no mínimo 60%, o consumo de crack. Nitidamente a mais eficiente e humanizada estratégia até agora pensada para a Cracolândia. 
    Não houve, porém, continuidade ao “De braços abertos”. Apesar de sempre dizer que é diferente da “velha-política”, o atual prefeito seguiu a tradição de ignorar ações bem-sucedidas de governos anteriores. Bastou Dória se deparar com o primeiro desafio mais complexo de ser resolvido para ver a repetição de estratégias paliativas e ineficazes, que, no caso da Cracolândia, só obrigam os usuários de drogas a se instalarem em outros pontos da cidade. Sem acabar com o tráfico. Sem acabar com o vício. Isso não é ser um bom gestor.

                                                        Mattheus Reis

sábado, 15 de abril de 2017

Hillsborough 28 anos: como uma farsa jogou os mais pobres para escanteio no futebol inglês

     15 de abril de 1989. Sheffield era o palco de um jogo esperado por um país inteiro: Liverpool e Nottingham Forest disputariam a semifinal da Copa da Inglaterra, o torneio de futebol mais antigo do mundo. Milhares de torcedores do Liverpool foram, com ou sem ingressos, para a cidade de 500.000 habitantes, acompanhar de perto o que deveria ser uma partida memorável dentro das quatro linhas, mas que até hoje é lembrada com tristeza e indignação pelo que ocorreu antes mesmo do sexto minuto de bola rolando.
     O estádio de Hillsborough, com capacidade para 40.000 espectadores e construído para a Copa do Mundo de 1966, só possuía uma entrada para todos os torcedores chegarem às arquibancadas. Uma multidão - muitos com ingressos na mão - se aglomerou a poucos metros dos portões. O efetivo policial estava aquém numericamente e despreparado. Vinte minutos antes do pontapé inicial da partida, é dada, pelo chefe da polícia local, a ordem para que as catracas fossem liberadas. Na verdade, havia sido dada uma sentença de morte.

Esmagados: catracas livres levaram à superlotação em setor atrás de um dos gols.

     Noventa e seis torcedores do Liverpool morreram. A princípio, os fatos apontavam para uma clara incapacidade das autoridades públicas locais em garantir a segurança, bem como a negligência de marcar um jogo de futebol de grande porte para um estádio sem a infraestrutura adequada. No entanto, o que as autoridades locais também demonstraram, de forma inacreditável, foi o descomprometimento com a verdade. Um relatório apresentado meses depois responsabilizou os próprios torcedores pela tragédia, que estariam "bêbados e causando confusão". Em 2012, após anos de batalhas judiciais travadas por familiares das vítimas, a decisão baseada nesse relatório foi anulada, uma nova investigação iniciada e, ano passado, chegou-se à única e verdadeira conclusão: a polícia do condado de South Yorkshire, onde está localizada Sheffield, foi responsabilizada pelas mortes. Descobriu-se que depoimentos de policiais que haviam trabalhado na segurança do jogo foram alterados para criar uma mentira. Não havia um grande número de latas de cerveja ou outras bebidas alcoólicas nos arredores do estádio, não houve conflitos de grandes proporções entre torcedores, e estes não forçaram a entrada no estádio, sendo as catracas, de fato, liberadas por decisão própria dos agentes.
    A Justiça tardou, mas corrigiu seu erro. Mesmo assim, algumas consequências da tragédia de Hillsborough impedem, até hoje, que o futebol no país seja um ambiente mais democrático e popular de torcer. A opinião pública, chocada e vítima da manipulação dos fatos, tratou o episódio, à época, como "a gota d'água". A partir de Hillsborough, iniciou-se uma intensa campanha pelo poder público inglês, liderada até pela então primeira-ministra Margaret Thatcher, para higienizar os estádios, com intuitos não só esportivos e econômicos, mas políticos. A infraestrutura dos estádios se modernizou, a violência entre torcedores diminuiu significativamente com a adoção de medidas punitivas eficazes e os campos deixaram de ser um lugar visto com temor. Nada viria de graça, todavia. Em contrapartida, foi pavimentado o caminho para a elitização do público e para perseguição de quaisquer torcidas organizadas, até mesmo as pacíficas, através da criação da Premier League em 1992, em substituição ao antigo campeonato inglês.
     Os Hooligans, como foram taxados "os brigões do futebol" dos anos 1980 eram, em sua maioria, também associados a sindicatos de trabalhadores da indústria e do comércio ingleses. Thatcher, neste período (1979-1990), empreendeu um conjunto de reformas neoliberais que retiraram direitos de inúmeras classes de trabalhadores e desmontaram estado de bem-estar social no Reino Unido. A violência dos Hooligans nos estádios também serviu como pretexto para enfraquecer a oposição desses sindicatos contra o governo e as medidas polêmicas adotadas.
     Hoje, quase três décadas depois, a Premier League é o campeonato nacional mais valioso do mundo, sendo frequentemente elogiada pela organização, capacidade de lucro e espetáculo. Suas partidas são vistas todos os finais de semana por bilhões, dos EUA à Asia. No entanto, um espaço visto erradamente por muitos como apolítico, mostra que o legado de Thatcher para o futebol está longe de ser uma unanimidade: as arquibancadas cada vez mais se manifestam contra esse aparente "mundo dos sonhos". O preço do ingresso, o mais alto da Europa, é hoje o principal fator de elitização nas arquibancadas inglesas.
     Os programas de sócio-torcedor adotados, com venda de carnês para todos os jogos da temporada de cada clube, embora tenham criado uma nova fonte milionária de receita e fidelização, impedem ainda mais o torcedor pobre, que vai ao estádio só quando o dinheiro sobra e tão somente pode comprar seu ticket na bilheteria, de ver sua paixão de perto. Assim, cria-se a falsa impressão de que esse tipo de torcedor não existe mais, de que ele é fruto de um passado arcaico. Esse torcedor existe, mas foi deixado para trás, e se vê obrigado, na maioria das vezes, a ficar no ostracismo, na frente de uma tela de TV.  

  britânica "BBC", sobre o preço dos ingressos, o Manchester City é o clube que
  oferece, em média, o valor mais barato do ticket. Mesmo assim e com grandes
  craques em campo, o valor é considerado abusivo pelos torcedores do clube.

      Inflacionado: torcida do Liverpool protesta contra a elevação do preço do ingresso
      ao longo das décadas na Premier League, de 4 libras (R$ 15), antes da criação do
      campeonato para 43 libras (R$168) em 2010.

     No Brasil, o cenário não é diferente, justamente pelo consenso equivocado de que esse modelo, aplicado inicialmente na Inglaterra e depois no mundo, é ideal, sem erros e capaz de ser reproduzido de modo integral a qualquer campeonato no mundo e a qualquer realidade socioeconômica. Uma das consequências mais negativas da Copa do Mundo de 2014 para os torcedores talvez tenham sido as novas arenas, sem dúvida mais seguras e confortáveis, mas cujo custo elevado de manutenção acaba sendo transferido para o valor do ingresso. Essa tendência de encarecimento já podia ser constatada desde o início dos nos 2000 e os novos estádios, construídos e reformados para o mundial e que, ao todo, custaram R$ 8 Bi, tendem a acelerar o processo de elitização a médio prazo. 

Estudo da Consultoria Delloite revelou que, enquanto a inflação do Brasil foi
de 54%, no acumulado entre 2005 e 2014 (IBGE), o preço médio dos ingressos
subiu 276% no  mesmo período.
      
     É difícil matar a paixão por um clube. Cada um torce de um jeito, aplaudindo ou berrando. Paixão não deveria, em tese, ter classe social. É inegável, porém, que, entre os torcedores mais pobres, ela tem sido sistematicamente abalada, seja na Inglaterra, no Brasil ou em outros campos mundo afora. A realidade do esporte globalizado envolve muitos números e cifras, além de planejamento. Por isso, não deve haver mais espaço para dirigentes amadores. O desafio é equilibrar interesses muitas vezes opostos. Plural, democrático, popular e fascinante, a essência do futebol não pode ser perdida. Se isso não for preservado, o que tanto amamos ficará à imagem e semelhança da política, por exemplo: endinheirada, mas completamente sem encanto e onde a maioria está distante do povo.   


                                                                    Mattheus Reis

segunda-feira, 10 de abril de 2017

A dura realidade do Oriente Médio obriga a aceitar o que, em tese, é inadmissível

     O autoritarismo é um componente histórico na política do Oriente médio. Governos, mesmo respaldados pelo voto e popularidade, se converteram, na região, nas últimas décadas, em dinastias familiares que perseguem opositores, radicais ou democratas, como na Síria. Muito desse autoritarismo foi patrocinado, sobretudo durante a Guerra Fria, pelos blocos capitalista e socialista; cada Estado árabe com seu alinhamento na luta contra o "inimigo" no seculo XX. Com essas raízes históricas, Bashar al-Assad sobrevive até hoje, apoiado pela Rússia e por grupos armados compostos por aliados civis.
     Não se sabe, ao certo, se o ataque químico que vitimou cerca de 86 cidadãos na cidade de Idlib, na última quarta-feira, partiu das forças armadas comandadas por Assad. Independentemente disso, a guerra que se arrasta pelo sétimo ano foi mais que suficiente para mostrar, à luz do mundo, a tirania do presidente sírio. Apesar da fumaça e destruição causada pelos bombardeios diários que assolam o país, é possível ver que as soluções simples ou utópicas não serão as salvadoras. A realidade do Oriente Médio e os exemplos recentes na região nos obrigam a admitir o que seria, em tese, inadmissível diante do tamanho desespero que enfrenta parte do povo sírio: Assad é o último que pode cair neste faroeste.

Ouvir o recado: Para muitos, a Síria pode piorar, se é que isso é possível,com 
uma queda imediata de Assad.

     A Primavera árabe tentou, mesmo com interesses ocultos por trás do movimento, romper essa realidade autoritária, mas fracassou. À exceção da Tunísia, todos os outros países onde ocorreram protestos de grande porte e deposições em 2011 passaram a lidar, desde então com o crescimento de grupos terroristas, intervenções não-autorizadas e anti-democráticas além de guerras civis. A Líbia até pouco tempo atrás possuía dois governos precisou de uma intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano passado em busca de um mínimo de estabilidade. O Egito é governado, desde 2013 por um junta militar que derrubou o primeiro líder eleito democraticamente e se travestiu de democrática com a eleição, em 2014, do general al-Sisi como presidente. 
     Kadafi e Mubarak impuseram seu poder ao ponto de colocar seus respectivos países e cidadãos como reféns de uma cultura política de exultação à figura do líder único e supremo. Kadafi era a Líbia. O Egito era Mubarak. Quando essas lideranças caíram, uma parte do Oriente médio perdeu de vez o rumo, já que, até hoje, não surgiram outros líderes para disputar eleições livres e com capacidade de mobilização em torno de um projeto democrático e independente do fundamentalismo religioso e da interferência das potências ocidentais. A disputa pelo poder se fragmentou e, sem um projeto conciliador, partiu-se para a guerra. O problema maior não é a deposição (todo déspota deve cair), mas o "day-after", a sucessão e a redemocratização. A Primavera árabe só tinha como fazer metade do trabalho. E o ocidente tem sistemática e propositalmente falhado em criar estabilidade para a região.  
     A Síria não sabe, neste momento, o que fazer se Assad cair ou renunciar; para agravar ainda mais a crise humanitária e política, que reflete na escalada do terrorismo e no crescimento da imigração para a Europa. Assad tem obtido êxito ao combater o Estado Islâmico, cujo território tem diminuído desde o ano passado. Seu governo ainda controla grande parte do país, onde não há relatos de conflitos. Em meio a tamanhas violações de direitos humanos contra opositores e civis, esse é o trunfo do presidente sírio para manter sua popularidade alta entre os sírios e que faz o Ocidente pensar duas vezes antes de uma intervenção mais incisiva.

A atual divisão territorial na Síria: Fonte:Instituto de Estudos de Guerras

     Donald Trump, porém, não pensou duas vezes. Sua ofensiva militar, a primeira contra o governo sírio em si nestes seis anos, um dia após as mortes causadas pelo gás sarin, pode ter sido pontual, para obter certa popularidade e ao mesmo tempo intimidar Assad a não ordenar ataques químicos caso ele realmente os tenha cometido ou pense em cometê-los no futuro. Pode também ser, no pior dos cenários, o início de uma nova campanha, que colocaria em lados opostos EUA e Rússia em um conflito de grandes proporções, cujo prêmio seria um país fragilizado e um povo sem alternativas a não ser continuar submisso. 
     No Iraque foi assim. Sem autorização da ONU, uma intervenção derrubou Saddam Hussein em 2003, com a justificativa de que seu governo possuía armas de destruição em massa. Nada foi encontrado, o ditador foi condenado à morte, mas os iraquianos foram obrigados a se ajoelhar diante das violações do exército americano e do frágil governo de Nouri al-Maliki. As tropas se retiraram no fim de 2011, o país foi deixado às traças, o exército iraquiano se viu sem a estrutura e inteligência antes oferecidas pelos EUA, o Estado Islâmico cresceu e, paradoxalmente, existe um saudosismo local em relação aos tempos de Saddam.

            Encenação Emblemática: o Secretário de Estado Americano durante o
         primeiro mandato de Bush, Colin Powell, levou ao Comitê de Segurança
         da ONU, em 2003, uma suposta amostra de antrax, substância altamente 
         tóxica e que seria componente das supostas armas químicas criadas por 
         Saddam Hussein. Anos depois, vazou um relatório da inteligência americana,
         afirmando que não havia nenhuma arma do tipo em solo iraquiano.

     A realidade do Oriente Médio é dura, onde é necessário, muitas vezes, escolher "a melhor entre as piores opções": o colapso do abandono, que leva a guerras sectárias, ou autoritarismo, sem dúvida danoso, mas que historicamente assume função estabilizadora na região, um barril de pólvora. A democracia nunca deixará de ser uma esperança. Mas como disse George Orwell, "A Guerra não é feita para ser ganha, é feita para ser contínua". Historicamente é o que tem sido feito no Oriente Médio, sem perspectiva alguma de paz duradoura, mesmo que sejam mudadas peças no tabuleiro geopolítico.

                                                           Mattheus Reis
   

segunda-feira, 27 de março de 2017

Com 60 anos, a União Europeia ainda tem fôlego para evitar sua explosão?

     As duas Guerras Mundiais - causadas pelo ultranacionalismo, autoritarismo, xenofobia e por uma acirrada competição entre as potências europeias por mercados - foram traumáticas o bastante para os líderes de um continente até então arrasado perceberem que novos princípios deveriam nortear relações políticas e econômicas. A Europa aceitou no pós-guerra o desafio de se lançar em uma jornada na qual a integração e a diplomacia seriam as "armas" da vez. Evitar a trilogia de um horror que já havia vitimado milhões na primeira metade do século XX era um consenso humanitário.
      Além disso, a ascensão da União Soviética como superpotência política, econômica e militar após 1945 era um componente que jamais poderia ser desconsiderado numa Europa em que os ideais socialistas tinham potencial para mobilizar as classes mais pobres em meio ao caos da época. Os 120 bilhões de dólares do Plano Marshall (valores atuais) catalisaram, por sua vez, a integração europeia, sendo a criação da Comunidade Econômica Europeia (CEE) a primeira grande iniciativa nesse sentido, em 1957. A assinatura do Tratado de Roma por Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo, que oficializou a CEE, completou 60 anos no último sábado.
      Esse acordo comercial, visto há seis décadas como inovador, é, hoje apenas um dos pilares de sustentação do gigantismo e da complexidade não só da União Europeia, mas também do sentimento de ser europeu, acima das nacionalidades. A livre circulação de pessoas entre as fronteiras, a criação do Euro como moeda única e a adequação das legislação de cada Estado-membro a uma Instituição política superior, comum e supranacional, o Parlamento Europeu, levaram o continente a um período de estabilidade e prosperidade para grande parte de sua população.
      No entanto, esse progresso camuflou falhas na formação e, sobretudo, na expansão da União Europeia, assim como nos cegou por muito tempo em relação às forças políticas cujo intuito é reverter drasticamente esse avanço civilizatório e que sempre estiveram presentes no cenário político do continente, mesmo com influência reduzida em alguns momentos. Expandir as fronteiras do bloco para além dos países que, historicamente, impulsionam o crescimento da região (França, Itália, Alemanha e Reino Unido) paradoxalmente uniu e criou um abismo. Chegou-se à marca de 28 Estados-membros da União Europeia em 2014, mas alguns deles, como Grécia, Portugal, Espanha e os do leste europeu (antigas áreas de influência da URSS durante a Guerra Fria), incorporados nos anos 1990 e 2000, possuem até hoje uma capacidade econômica menor e frágil. Isso não foi solucionado.
      Quando a crise econômica e financeira de 2008 nos EUA atravessou o Oceano Atlântico e bateu à porta do velho continente, os "gigantes" do desenvolvimento europeu precisaram socorrer os "nanicos" para que o bloco não explodisse, o que não agradou a praticamente ninguém. Cidadãos alemães, franceses e ingleses cada vez mais se mostravam insatisfeitos com o fato de o dinheiro de seus impostos ser transferido para evitar a falência de gregos e espanhóis, por exemplo, que amarguravam taxas de desemprego de 25% entre 2010 e 2011. Por outro lado, os empréstimos bilionários cedidos aos países que sofreram primeiro os impactos daquela crise exigiam, como troca, reformas drásticas de austeridade, que cortavam direitos nas áreas trabalhista e da previdência social.
      Estava plantada, portanto, a semente para as forças políticas até então ocultas desabrocharem: os partidos de extrema-direita, com seu discurso de oposição ao bloco ganharam força tanto na França e Inglaterra, como na Grécia. A partir de 2009, a Europa começou a mostrar sua outra face, que remonta aos tempos de guerra: a face do "cada um por si". A crise migratória, acentuada em 2015 por conta da guerra civil na Síria, e o terrorismo do Estado Islâmico deram mais força e popularidade aos líderes dessas correntes políticas, como Marine Le Pen, na França, que neste momento é a segunda colocada na corrida presidencial francesa, cuja votação ocorre em maio. O "Brexit", a primeira saída de um Estado, o Reino Unido, da União Europeia na história, já foi a primeira e irresponsável consequência dessa crise que o bloco atravessa.

Fonte: Pew Research Center. Divulgação: Revista "Exame"

     Não dá para negar: a Europa está em contradição e os pilares de sua integração, frágeis. Fronteiras dos países-membros da União Europeia ficaram fechadas para evitar a entrada de refugiados, ignorando o princípio da livre circulação de pessoas estabelecido a partir de 1985. O medo do terrorismo é real, mas não serão fronteiras abertas a causa de mais mortes. O terrorismo atualmente está em outro patamar, o virtual. A propaganda de grupos terroristas está formando seus "soldados" em seus próprios países. A Europa, por conta do envelhecimento de sua população, apresenta défcit de cerca de 800 mil trabalhadores. Os refugiados poderiam ser a solução não só para preencher estes postos de trabalho vazios, mas para turbinar o crescimento do bloco, estagnado nesta década. Tudo isso não está sendo encarado da forma correta.
       Mesmo em xeque, os líderes da União Europeia ainda estão com uma margem de manobra para evitar um colapso do bloco. Apesar de Trump ter vencido ano passado nos EUA, os políticos alinhados a ele na Europa não devem obter vitórias em eleições marcadas para este ano. É um fôlego a mais para mudar o destino de um projeto de 60 anos. Se, em 1945, evitar um novo e sangrento conflito de grandes proporções logo após a Segunda Guerra Mundial era um consenso, esse pacto ainda precisa estar de pé porque a União Europeia pode ter seus defeitos, mas é, acima de tudo, um esforço pela paz, como mostra o gráfico abaixo:

Fonte: Comissão Europeia. Gráfico traduzido do Inglês para o Português

                                                              Mattheus Reis
       
                     

terça-feira, 21 de março de 2017

Temer, suas reformas caóticas e a socialização das perdas

    O governo Temer corre contra o tempo para se salvar. Os dez meses de sua gestão tiveram como sombra a ameaça de colapso por conta da Lava-Jato e da possível cassação de seu mandato pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O senador e aliado de Temer, Romero Jucá, foi enfático: para ele, parte da classe política envolvida em corrupção, da qual Jucá provavelmente é membro de carteirinha, está "em guerra" para não cair no precipício. Neste "salve-se quem puder", fica cada vez mais claro que, além das tentativas de anistiar o "Caixa 2", a rápida aprovação das danosas 'reformas' econômicas é uma das últimas cartadas de Temer para sustentar o mínimo de apoio da classe política, totalmente pragmática e sem fidelidade, dos grandes veículos de comunicação e da comunidade empresarial.

Frágil: Temer era apontado como hábil conciliador, mas está claro que só a aprovação 
 das reformas lhe dá o mínimo de sustentação em meio à Lava-Jato, TSE e impopularidade.

     O teto de gastos já foi sancionado em janeiro e, para completar a tríade do pacote econômico, faltam as alterações nas atuais legislações trabalhista e da previdência. Apesar da resistência vista nas manifestações da última quarta-feira e da possibilidade de parlamentares tanto da oposição quanto da situação tentarem alterar as propostas iniciais do Palácio do Planalto, as 'reformas' avançam nas comissões antes das votações na Câmara e no Senado.
      Assim, se caminha não só em direção à perda de direitos dos cidadãos, mas também rumo a armadilhas que comprometerão a capacidade do atual e de futuros governos em cumprir suas obrigações administrativas e fiscais. No entanto, a propaganda, área em que o governo Temer, apesar da crise, aumentou seus gastos em 27% em novembro e dezembro de 2016 em comparação com o mesmo período de 2015, segundo a Secretaria de Comunicação Federal, tenta dizer de modo massivo, simplista e ameaçador de que há por trás de tudo isso o "compromisso com o equilíbrio fiscal e a manutenção de direitos". Caso contrário, "acaba tudo".
      Como se sabe, o teto de gastos congelará o orçamento total do governo federal pelos próximos 10 anos, podendo esse prazo ser prorrogável por mais 10. Consequentemente, ficam estagnados os investimentos públicos e a geração de empregos, independentemente se o Produto Interno Bruto (PIB) voltar a crescer. Portanto, a taxa de desemprego, hoje em 13%, tende a se manter em patamares elevados, distantes dos 4,5% em dezembro de 2014, o menor índice desde março de 2002, de acordo com o IBGE.
     A entrada em vigor do teto obriga um corte nas áreas sociais. Já que a educação, a saúde e o bolsa-família possuem piso, ou seja, um limite mínimo de investimentos anuais, a Previdência Social passou a ser o primeiro alvo da tesoura. Idade mínima de aposentadoria aos 65 anos - em um país onde 19 cidades possuem expectativa de vida equivalente - e 49 anos de contribuição para aposentadoria integral são os principais pontos, enquanto o governo negligencia e não cobra mais de 500 empresas que, juntas, devem R$ 426 Bi ao INSS, quase o triplo do rombo de R$ 150 Bi da Previdência. 
    As novas regras, se adotadas, transformarão a Previdência brasileira na mais rígida do mundo, o que inibe os cidadãos de contribuírem para o sistema público de aposentadorias. Treze milhões de pessoas estão sem emprego, a renda mensal das famílias, em 2016, caiu 7,5% em relação a 2015. O dinheiro está sendo usado nestas famílias cada vez mais para manter itens fundamentais de consumo, como alimentos e remédios, e se torna inviável aumentar o valor e o tempo de contribuição para o INSS, como deseja Temer. Quem pertence às classes A e B poderá recorrer à previdência privada, dos bancos (esse também é um dos objetivos dessa 'reforma'). Já no setor público, porém, a demanda por aposentadorias aumentará em decorrência do envelhecimento da população, mas a arrecadação do INSS não será suficiente. A conta não fechará no azul se a equação aplicada for a que está sendo planejada pela equipe comandada pelo Ministro da Fazenda Henrique Meirelles.
     Mais uma vez, o erro se repete. Em recente entrevista, a ex-presidente Dilma Rousseff admitiu que não deveria ter concedido tantas isenções de impostos, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Não cobrar esses impostos das empresas, à época, diminuiu a arrecadação e não resultou na geração de empregos, como se previa. Pelo contrário, a renda se concentrou. O Rio de Janeiro enfrenta a mais grave crise econômica na história por conta de um total de R$ 151 Bi não-arrecadados segundo o Ministério Público. Dava-se a isenção em troca de doação para campanha. Agora, Temer "esquece" os já mencionados R$ 426 Bi que deveriam ir aos cofres da Previdência e acabar com seu rombo. 
     Nos dicionários, "Reformar" significa, "reorganizar", "renovar", "MELHORAR". Dá para perceber que esse pacote (Teto de gastos, Reforma da Previdência e Reforma Trabalhista), extremamente agressivo aos mais pobres e considerado inconstitucional pela Organização das Nações Unidas, Procuradoria Geral da República e Ministério Público do Trabalho, não é a melhor e, muito menos, a única saída. É reflexo de um governo desconectado da realidade, alheio às dificuldades atuais de seus eleitores, além de ilegítimo democraticamente. Mas o que esperar de um frágil líder a não ser frases como "Quem reclama da reforma da previdência é quem ganha mais" e "Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços nos supermercados do que a mulher"? Pelo menos, espero que ele tenha visto a quantidade de mulheres e trabalhadores nas ruas há uma semana e que não querem engolir uma dose "cavalar" desse remédio amargo, cujos efeitos colaterais são o crescimento da desigualdade social e o desprezo por direitos.

                                                                  Mattheus Reis
         

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Um semblante, um sentimento

O que temos para hoje: semblante de
Michelle Obama na posse de Trump é
a tônica do sentimento de muitos ao ver
um aprendiz raivoso na Casa Branca.  
    A vitória nas eleições presidenciais americanas de um bilionário empresário, sem experiência alguma em Washington e cujo prazer é espalhar preconceito foi o "grand e tenebroso finale político" em meio a uma série de outros episódios que fizeram de 2016 um ano de transformações rápidas e drásticas na geopolítica. Embora tenham ficado no passado, os traumas e choques estão longe de serem superados. E Donald Trump, protagonista dessa guinada, acabou de ratificar, em seu medíocre discurso de posse como 45º presidente dos EUA, que não colaborará para a conciliação de interesses antagônicos dentro e fora do país que começa a governar a partir de hoje. Essa vocação, imprescindível a todas as lideranças mundiais, é, para ele, uma fragilidade. 
    Os componentes que geraram essas transformações remontam, em 2017, o cenário político, econômico e social do final do século XIX e início do XX. O resultado já é conhecido e relembrado nas aulas de história: o fechamento de mercados, a xenofobia e intolerância levaram o mundo a duas guerras mundiais. Se estamos testemunhando um replay nada agradável na história, isso pode ser interpretado como uma reação às consequências negativas da globalização, que, de fato, a partir dos ano 1970, gerou o aumento da concentração de renda, perda de identidades culturais e fragilidade das soberanias nacionais e da representatividade política. 
       No entanto, a resposta às fragilidades da globalização não deve ser a que está sendo expressa pelo voto ultimamente: o apoio aos discursos de ódio, seja de Trump ou de qualquer outra personalidade politicamente alinhada a ele. Mas na era dos extremos e da pós-verdade, os eleitores do Republicano se basearam em convicções, e não em fatos, de que essa era a única alternativa: retornar a uma mentira era preciso. O "Make America Great Again" é, assustadoramente, um exercício de recordar com nostalgia tempos de supremacia branca, machista, patriarcal e xenófoba, que nortearam a escravidão, a perseguição aos indígenas, a segregação racial entre outras violações de direitos humanos durante a história dos EUA. 
     Apesar de o governo Obama não ter solucionado problemas raciais e falhado na luta contra o terrorismo, a criação recorde de empregos após a mais grave crise econômica e financeira desde 1929, a reaproximação diplomática com Cuba e Irã, a liderança até então nunca vista de um líder americano contra o aquecimento global, a reforma na saúde e o reconhecimento legal e em todo o território nacional do casamento entre homossexuais refletem as mudanças vistas ultimamente na sociedade americana e a formação inevitável de um novo país, mais multicultural. 
     Esses nítidos avanços foram vistos, entretanto, como retrocesso por Trump e aproximadamente 50% dos americanos, que achavam, em pesquisas de opinião antes das eleições, que os EUA estavam "fora dos trilhos". Tão atentos às demandas de minorias, Obama, Hillary Clinton, Bernie Sanders e outros Democratas não compreenderam não conseguiram, por outro lado, enfrentar essa oposição dentro e fora de Washington. A realidade palaciana e do establishment político dão mais estrutura, recursos e chances de vitória ao grupo que já está no poder, mas impede, em muitas ocasiões, ver e ouvir alguns sinais dados pela opinião pública. Trump as ouviu e, assim com em seus negócios, vendeu um pesadelo camuflado de sonho. Sua estratégia, apesar de repulsiva, criou laços de identificação com esses eleitores conservadores, insatisfeitos com os novos rumos tomados pelo país e pelo mundo globalizado, em geral, e que se sentiam marginalizados. 
         De apresentador de um reality show de empreendedorismo e negócios na tv a 45º presidente dos EUA, Trump é o aprendiz da vez. Seu primeiro teste de fogo são as denúncias com fortes indícios de que informações pessoais de sua adversária de campanha, Hillary Clinton, e do Partido Democrata foram hackeadas por agentes russos para favorecer os Republicanos na disputa, em um episódio que lembra muito Watergate. Com incertezas, divisão e críticas da imprensa ate mesmo de colegas de partido, mais um capítulo da história mundial começa a ser escrito. Ter Trump como um de seus autores nos leva a supor que são pequenas as chances de um final feliz.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

A Euro coroou o passado e o presente de Portugal

               As lágrimas de um país inteiro.



      Bem-vindo ao clube: Portugal era até
ontem a única seleção de considerável
prestígio no cenário europeu a não
ter títulos. O fim do tabu veio com
 o 1 a 0 sobre a França.
     O velho continente enfrenta um dos mais difíceis momentos de sua história recente. O terrorismo, a crise migratória, as ainda elevadas taxas de desemprego decorrentes da crise econômica de 2008 e o nacionalismo exacerbado de partidos de extrema-direita, que cada vez mais ganham terreno na política, criaram um cenário complexo de tensões, cujo marco foi o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, decidida no final de junho. Para os franceses, anfitriões da Eurocopa, o torneio e o título da sua seleção seriam uma forma de amenizar o orgulho ferido por conta dos atentados em Paris no ano de 2015 e dos problemas internos, acentuados recentemente com o polêmico projeto de reforma trabalhista defendido pelo governo do presidente François Hollande.
  Nesse contexto, o futebol e os megaeventos esportivos não são fatores responsáveis por alienação. Pelo contrário, buscam resgatar, mesmo que por um período curto, a alegria, a união e o respeito, tão importantes quanto o legado estrutural que megaeventos podem proporcionar. Durante a Eurocopa, as brigas entre torcedores de várias seleções mostrou que esse grupo minoritário que partiu para confrontos violentos é reflexo de um posicionamento radical que sempre existiu na Europa, transcende o esporte e cresceu nos últimos anos. No entanto, à medida que as partidas aconteciam, o protagonismo do futebol se evidenciou com as atuações de gala de Griezmann, Bale, Buffon, Cristiano Ronaldo, entre outros, e das torcidas, como as da Islândia e da Irlanda, colocando a essência do esporte no seu devido lugar. O esporte se tornou tão competitivo, tão racional a ponto de perder seu caráter humano que, às vezes, nos esquecemos de um de seus elementos centrais: o poder de emocionar. 
     O sonho francês de ganhar mais um título no futebol como anfitrião, após as conquistas da Eurocopa de 1984 e da Copa do Mundo de 1998, permaneceu com grandes chances de se realizar até ontem. A vitória sobre a Alemanha alçou a França ao patamar incontestável de favoritismo na final. Portugal, entretanto, também tinha um sonho: a seleção que revelou ao mundo, em diferentes épocas, ícones como Eusébio, Figo, Deco e Cristiano Ronaldo era a única de considerável prestígio no cenário europeu que jamais alcançara, até então, um título capaz de a levar à elite do futebol europeu, tendo oportunidades para isso, mas que não se concretizaram. O vice-campeonato na Eurocopa de 2004, em casa, foi a bola na trave mais dolorida. De fato, a geração de Cristiano Ronaldo alcançou, 12 anos depois, um feito que as de Eusébio e Figo não conseguiram, mas este é um prêmio em reconhecimento a tudo o que os craques lusitanos do passado possuem de legado; uma compensação pelas incoerências do futebol.    
     O título de expressão não havia sido conquistado até então provavelmente pelo fato de Portugal - da mesma forma que qualquer outro país - precisar não apenas de craques, mas de um time, que não obrigatoriamente tem de ser espetacular. Basta ser corajoso e equilibrado diante dos altos e baixos existentes em uma partida para ter 0,1% de chance. Por isso a Islândia foi tão longe na competição e País de Gales chegou às semifinais. Foi assim que Portugal se comportou na decisão.
        As lágrimas de Cristiano Ronaldo, ainda na primeira metade do primeiro tempo, ao perceber a impossibilidade de permanecer em campo também poderiam ser as de uma derrota antecipada. Afinal de contas, o líder foi abatido, pelo menos dentro das quatro linhas, após uma dividida com o meio-campistas francês Payet. A partir de então, vimos, pela primeira vez em anos de Cristiano Ronaldo vestindo a camisa da seleção, Portugal atuar como "time", no sentido mais claro da palavra. Com muito sacrifício, sorte e organização, os jogadores portugueses resistiram à pressão francesa durante os 90 minutos. 0 a 0.
     A prorrogação foi o "Dia D" versão portuguesa. Se em 1944 o dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia foi, assim como a Batalha de Stalingrado, um dos momentos decisivos para a reviravolta na Segunda Guerra Mundial, os 30 minutos de tempo extra no Stade de France marcaram a virada a favor de Portugal no jogo. O gol de Éder arrancou da garganta dos portugueses tudo o que estava entalado no futebol: decretou o a primeira vitória de Portugal sobre a França desde 1973, devolveu aos portugueses o que a Grécia lhes tirou em Lisboa 12 anos atrás, um título que muitos lusitanos achavam que não conquistariam mais a partir do momento em que o craque se estirou no gramado e saiu impotente em uma maca. Pobre Cristiano, mal sabia que seus companheiros fariam ele e um país inteiro chorar muito mais naquela noite... mas de alegria.


                                Mattheus Reis.