sábado, 15 de abril de 2017

Hillsborough 28 anos: como uma farsa jogou os mais pobres para escanteio no futebol inglês

     15 de abril de 1989. Sheffield era o palco de um jogo esperado por um país inteiro: Liverpool e Nottingham Forest disputariam a semifinal da Copa da Inglaterra, o torneio de futebol mais antigo do mundo. Milhares de torcedores do Liverpool foram, com ou sem ingressos, para a cidade de 500.000 habitantes, acompanhar de perto o que deveria ser uma partida memorável dentro das quatro linhas, mas que até hoje é lembrada com tristeza e indignação pelo que ocorreu antes mesmo do sexto minuto de bola rolando.
     O estádio de Hillsborough, com capacidade para 40.000 espectadores e construído para a Copa do Mundo de 1966, só possuía uma entrada para todos os torcedores chegarem às arquibancadas. Uma multidão - muitos com ingressos na mão - se aglomerou a poucos metros dos portões. O efetivo policial estava aquém numericamente e despreparado. Vinte minutos antes do pontapé inicial da partida, é dada, pelo chefe da polícia local, a ordem para que as catracas fossem liberadas. Na verdade, havia sido dada uma sentença de morte.

Esmagados: catracas livres levaram à superlotação em setor atrás de um dos gols.

     Noventa e seis torcedores do Liverpool morreram. A princípio, os fatos apontavam para uma clara incapacidade das autoridades públicas locais em garantir a segurança, bem como a negligência de marcar um jogo de futebol de grande porte para um estádio sem a infraestrutura adequada. No entanto, o que as autoridades locais também demonstraram, de forma inacreditável, foi o descomprometimento com a verdade. Um relatório apresentado meses depois responsabilizou os próprios torcedores pela tragédia, que estariam "bêbados e causando confusão". Em 2012, após anos de batalhas judiciais travadas por familiares das vítimas, a decisão baseada nesse relatório foi anulada, uma nova investigação iniciada e, ano passado, chegou-se à única e verdadeira conclusão: a polícia do condado de South Yorkshire, onde está localizada Sheffield, foi responsabilizada pelas mortes. Descobriu-se que depoimentos de policiais que haviam trabalhado na segurança do jogo foram alterados para criar uma mentira. Não havia um grande número de latas de cerveja ou outras bebidas alcoólicas nos arredores do estádio, não houve conflitos de grandes proporções entre torcedores, e estes não forçaram a entrada no estádio, sendo as catracas, de fato, liberadas por decisão própria dos agentes.
    A Justiça tardou, mas corrigiu seu erro. Mesmo assim, algumas consequências da tragédia de Hillsborough impedem, até hoje, que o futebol no país seja um ambiente mais democrático e popular de torcer. A opinião pública, chocada e vítima da manipulação dos fatos, tratou o episódio, à época, como "a gota d'água". A partir de Hillsborough, iniciou-se uma intensa campanha pelo poder público inglês, liderada até pela então primeira-ministra Margaret Thatcher, para higienizar os estádios, com intuitos não só esportivos e econômicos, mas políticos. A infraestrutura dos estádios se modernizou, a violência entre torcedores diminuiu significativamente com a adoção de medidas punitivas eficazes e os campos deixaram de ser um lugar visto com temor. Nada viria de graça, todavia. Em contrapartida, foi pavimentado o caminho para a elitização do público e para perseguição de quaisquer torcidas organizadas, até mesmo as pacíficas, através da criação da Premier League em 1992, em substituição ao antigo campeonato inglês.
     Os Hooligans, como foram taxados "os brigões do futebol" dos anos 1980 eram, em sua maioria, também associados a sindicatos de trabalhadores da indústria e do comércio ingleses. Thatcher, neste período (1979-1990), empreendeu um conjunto de reformas neoliberais que retiraram direitos de inúmeras classes de trabalhadores e desmontaram estado de bem-estar social no Reino Unido. A violência dos Hooligans nos estádios também serviu como pretexto para enfraquecer a oposição desses sindicatos contra o governo e as medidas polêmicas adotadas.
     Hoje, quase três décadas depois, a Premier League é o campeonato nacional mais valioso do mundo, sendo frequentemente elogiada pela organização, capacidade de lucro e espetáculo. Suas partidas são vistas todos os finais de semana por bilhões, dos EUA à Asia. No entanto, um espaço visto erradamente por muitos como apolítico, mostra que o legado de Thatcher para o futebol está longe de ser uma unanimidade: as arquibancadas cada vez mais se manifestam contra esse aparente "mundo dos sonhos". O preço do ingresso, o mais alto da Europa, é hoje o principal fator de elitização nas arquibancadas inglesas.
     Os programas de sócio-torcedor adotados, com venda de carnês para todos os jogos da temporada de cada clube, embora tenham criado uma nova fonte milionária de receita e fidelização, impedem ainda mais o torcedor pobre, que vai ao estádio só quando o dinheiro sobra e tão somente pode comprar seu ticket na bilheteria, de ver sua paixão de perto. Assim, cria-se a falsa impressão de que esse tipo de torcedor não existe mais, de que ele é fruto de um passado arcaico. Esse torcedor existe, mas foi deixado para trás, e se vê obrigado, na maioria das vezes, a ficar no ostracismo, na frente de uma tela de TV.  

  britânica "BBC", sobre o preço dos ingressos, o Manchester City é o clube que
  oferece, em média, o valor mais barato do ticket. Mesmo assim e com grandes
  craques em campo, o valor é considerado abusivo pelos torcedores do clube.

      Inflacionado: torcida do Liverpool protesta contra a elevação do preço do ingresso
      ao longo das décadas na Premier League, de 4 libras (R$ 15), antes da criação do
      campeonato para 43 libras (R$168) em 2010.

     No Brasil, o cenário não é diferente, justamente pelo consenso equivocado de que esse modelo, aplicado inicialmente na Inglaterra e depois no mundo, é ideal, sem erros e capaz de ser reproduzido de modo integral a qualquer campeonato no mundo e a qualquer realidade socioeconômica. Uma das consequências mais negativas da Copa do Mundo de 2014 para os torcedores talvez tenham sido as novas arenas, sem dúvida mais seguras e confortáveis, mas cujo custo elevado de manutenção acaba sendo transferido para o valor do ingresso. Essa tendência de encarecimento já podia ser constatada desde o início dos nos 2000 e os novos estádios, construídos e reformados para o mundial e que, ao todo, custaram R$ 8 Bi, tendem a acelerar o processo de elitização a médio prazo. 

Estudo da Consultoria Delloite revelou que, enquanto a inflação do Brasil foi
de 54%, no acumulado entre 2005 e 2014 (IBGE), o preço médio dos ingressos
subiu 276% no  mesmo período.
      
     É difícil matar a paixão por um clube. Cada um torce de um jeito, aplaudindo ou berrando. Paixão não deveria, em tese, ter classe social. É inegável, porém, que, entre os torcedores mais pobres, ela tem sido sistematicamente abalada, seja na Inglaterra, no Brasil ou em outros campos mundo afora. A realidade do esporte globalizado envolve muitos números e cifras, além de planejamento. Por isso, não deve haver mais espaço para dirigentes amadores. O desafio é equilibrar interesses muitas vezes opostos. Plural, democrático, popular e fascinante, a essência do futebol não pode ser perdida. Se isso não for preservado, o que tanto amamos ficará à imagem e semelhança da política, por exemplo: endinheirada, mas completamente sem encanto e onde a maioria está distante do povo.   


                                                                    Mattheus Reis

segunda-feira, 10 de abril de 2017

A dura realidade do Oriente Médio obriga a aceitar o que, em tese, é inadmissível

     O autoritarismo é um componente histórico na política do Oriente médio. Governos, mesmo respaldados pelo voto e popularidade, se converteram, na região, nas últimas décadas, em dinastias familiares que perseguem opositores, radicais ou democratas, como na Síria. Muito desse autoritarismo foi patrocinado, sobretudo durante a Guerra Fria, pelos blocos capitalista e socialista; cada Estado árabe com seu alinhamento na luta contra o "inimigo" no seculo XX. Com essas raízes históricas, Bashar al-Assad sobrevive até hoje, apoiado pela Rússia e por grupos armados compostos por aliados civis.
     Não se sabe, ao certo, se o ataque químico que vitimou cerca de 86 cidadãos na cidade de Idlib, na última quarta-feira, partiu das forças armadas comandadas por Assad. Independentemente disso, a guerra que se arrasta pelo sétimo ano foi mais que suficiente para mostrar, à luz do mundo, a tirania do presidente sírio. Apesar da fumaça e destruição causada pelos bombardeios diários que assolam o país, é possível ver que as soluções simples ou utópicas não serão as salvadoras. A realidade do Oriente Médio e os exemplos recentes na região nos obrigam a admitir o que seria, em tese, inadmissível diante do tamanho desespero que enfrenta parte do povo sírio: Assad é o último que pode cair neste faroeste.

Ouvir o recado: Para muitos, a Síria pode piorar, se é que isso é possível,com 
uma queda imediata de Assad.

     A Primavera árabe tentou, mesmo com interesses ocultos por trás do movimento, romper essa realidade autoritária, mas fracassou. À exceção da Tunísia, todos os outros países onde ocorreram protestos de grande porte e deposições em 2011 passaram a lidar, desde então com o crescimento de grupos terroristas, intervenções não-autorizadas e anti-democráticas além de guerras civis. A Líbia até pouco tempo atrás possuía dois governos precisou de uma intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano passado em busca de um mínimo de estabilidade. O Egito é governado, desde 2013 por um junta militar que derrubou o primeiro líder eleito democraticamente e se travestiu de democrática com a eleição, em 2014, do general al-Sisi como presidente. 
     Kadafi e Mubarak impuseram seu poder ao ponto de colocar seus respectivos países e cidadãos como reféns de uma cultura política de exultação à figura do líder único e supremo. Kadafi era a Líbia. O Egito era Mubarak. Quando essas lideranças caíram, uma parte do Oriente médio perdeu de vez o rumo, já que, até hoje, não surgiram outros líderes para disputar eleições livres e com capacidade de mobilização em torno de um projeto democrático e independente do fundamentalismo religioso e da interferência das potências ocidentais. A disputa pelo poder se fragmentou e, sem um projeto conciliador, partiu-se para a guerra. O problema maior não é a deposição (todo déspota deve cair), mas o "day-after", a sucessão e a redemocratização. A Primavera árabe só tinha como fazer metade do trabalho. E o ocidente tem sistemática e propositalmente falhado em criar estabilidade para a região.  
     A Síria não sabe, neste momento, o que fazer se Assad cair ou renunciar; para agravar ainda mais a crise humanitária e política, que reflete na escalada do terrorismo e no crescimento da imigração para a Europa. Assad tem obtido êxito ao combater o Estado Islâmico, cujo território tem diminuído desde o ano passado. Seu governo ainda controla grande parte do país, onde não há relatos de conflitos. Em meio a tamanhas violações de direitos humanos contra opositores e civis, esse é o trunfo do presidente sírio para manter sua popularidade alta entre os sírios e que faz o Ocidente pensar duas vezes antes de uma intervenção mais incisiva.

A atual divisão territorial na Síria: Fonte:Instituto de Estudos de Guerras

     Donald Trump, porém, não pensou duas vezes. Sua ofensiva militar, a primeira contra o governo sírio em si nestes seis anos, um dia após as mortes causadas pelo gás sarin, pode ter sido pontual, para obter certa popularidade e ao mesmo tempo intimidar Assad a não ordenar ataques químicos caso ele realmente os tenha cometido ou pense em cometê-los no futuro. Pode também ser, no pior dos cenários, o início de uma nova campanha, que colocaria em lados opostos EUA e Rússia em um conflito de grandes proporções, cujo prêmio seria um país fragilizado e um povo sem alternativas a não ser continuar submisso. 
     No Iraque foi assim. Sem autorização da ONU, uma intervenção derrubou Saddam Hussein em 2003, com a justificativa de que seu governo possuía armas de destruição em massa. Nada foi encontrado, o ditador foi condenado à morte, mas os iraquianos foram obrigados a se ajoelhar diante das violações do exército americano e do frágil governo de Nouri al-Maliki. As tropas se retiraram no fim de 2011, o país foi deixado às traças, o exército iraquiano se viu sem a estrutura e inteligência antes oferecidas pelos EUA, o Estado Islâmico cresceu e, paradoxalmente, existe um saudosismo local em relação aos tempos de Saddam.

            Encenação Emblemática: o Secretário de Estado Americano durante o
         primeiro mandato de Bush, Colin Powell, levou ao Comitê de Segurança
         da ONU, em 2003, uma suposta amostra de antrax, substância altamente 
         tóxica e que seria componente das supostas armas químicas criadas por 
         Saddam Hussein. Anos depois, vazou um relatório da inteligência americana,
         afirmando que não havia nenhuma arma do tipo em solo iraquiano.

     A realidade do Oriente Médio é dura, onde é necessário, muitas vezes, escolher "a melhor entre as piores opções": o colapso do abandono, que leva a guerras sectárias, ou autoritarismo, sem dúvida danoso, mas que historicamente assume função estabilizadora na região, um barril de pólvora. A democracia nunca deixará de ser uma esperança. Mas como disse George Orwell, "A Guerra não é feita para ser ganha, é feita para ser contínua". Historicamente é o que tem sido feito no Oriente Médio, sem perspectiva alguma de paz duradoura, mesmo que sejam mudadas peças no tabuleiro geopolítico.

                                                           Mattheus Reis