quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Favela: onde a exceção vira regra.

A jornalista Carla Rocha faz uma análise bem clara de um episódio que, por mais acidental que tenha acontecido, não poderia ficar impune. No texto a seguir, publicado no jornal "O Globo", em 7 de novembro, é abordada a morte do estudante Eduardo de Jesus, de 10 anos, em um confronto entre policiais e traficantes no complexo do Alemão. Boa leitura e boa reflexão.                                                         

                                                  Licença para matar

       Que falta de punição alimenta a impunidade, todo mundo repete desde que o mundo é mundo. Mas a injustiça é muito mais perversa, é uma facada no coração, é o câncer do tecido social. A injustiça gera um sentimento mais complexo e destruidor porque tem alcance coletivo, sai do âmbito particular para apodrecer o mundo. É coisa grave, devasta tudo, vai levando por onde passa do cocô do cachorro às instituições mais sólidas. O bizarro desfecho do inquérito policial sobre o caso de Eduardo de Jesus, de 10 anos, morto por PMs no Alemão, é uma bomba atômica com alto poder de destruição, que deveria preocupar até mais a própria polícia do que as ONGs de direitos humanos, porque ela, a polícia, tem muito, muito mais a perder.
       Vai ser a primeira vez que um auto de resistência atingiu a cabeça de um menino inocente na forma de uma bala de fuzil. O resumo da ópera é surreal. Eduardo morreu, sim, um PM atirou na cabeça dele, sim, mas ninguém matou, não. Ou melhor: matou, mas não matou com vontade, com gosto, para ser submetido à lei. Ou: matou, mas quem mandou o garoto estar ali em meio a um confronto entre PMs e traficantes? Ou: matou, mas vai ficar por isso, porque a vida é dura aqui nos trópicos, e o policial vai ali tratar o trauma, às nossas expensas, que agora pagamos para ele trucidar criancinhas, e logo estará de volta às ruas.
       Foi dada uma licença para matar. Já vi investigações que não deram em nada — estamos longe de ter um CSI. Mas nunca vi um crime constatado, com prova técnica, de repente, não ser um crime. Tem corpo, sabe-se de onde partiu o tiro, mas é como se Eduardo tivesse se autoaniquilado. Podemos aceitar então que ele foi vítima da desigualdade social. Terá sido o maior crime do capitalismo desde sua criação. Em última análise, foi o capitalismo que o matou, ao dividir a sociedade entre pobres e ricos. E os capitalistas podem empurrar a responsabilidade para a sorte, essa megera, que o matou ao jogá-lo no lado pobre da força. Se tivesse sido vítima no Leblon, o inquérito teria tomado outro rumo. Atire a primeira pedra quem duvida. E ninguém desejaria que isso acontecesse em qualquer canto da cidade, amamos todos eles, é bom pontuar.
       Não acho que o policial saiu de casa com sede de sangue, disposto a estourar a cabeça da primeira criança que passasse na sua frente. A bem da verdade, o que passava pela cabeça dele pouco importa, não estamos em busca de um demônio para queimar na fogueira da Inquisição. Mas, se um PM matou um cidadão, ainda que por imperícia, deve responder pelo crime que cometeu. Se vai ou não ser condenado e, se condenado, a quantos anos, não sabemos. Mas, ao menos, deveria ser levado a um tribunal, em que testemunhas seriam ouvidas, provas apresentadas e defesas ouvidas. E não a um divã para expiar sua culpa.
       O grande mal da injustiça é que ela vai quebrando resistências, ampliando limites — até que não os enxergamos mais — e transformando o inadmissível em algo tolerável, sob certas circunstâncias. Essa é uma defesa da criança que foi morta? Óbvio que é. Mas isso é o óbvio. E tão importante quanto o fato de que outras vidas estão e estarão em jogo, a prevalecer essa lógica da “legítima defesa” como salvo-conduto para matar gente inocente. É uma defesa, menos óbvia, da polícia-cidadã, que tem que sair do imaginário carioca, das rodas acadêmicas e do discurso da autoridade para as ruas.
       A injustiça virou o personagem principal da triste e curta história de vida de Eduardo. A mãe, Terezinha, derrama suas lágrimas há meses, não há reparação para sua dor, que pode ser no máximo amenizada com a punição dos responsáveis pela sua perda. E temos a obrigação de, ao menos, dar dignidade a seu intenso sofrimento. Para todos nós, que não somos pais do Dudu, mas somos pais de alguém ou filhos de alguém, ainda há esperança, se não ficarmos paralisados, atônitos e chocados diante da desgraça do outro. Porque o outro é o nosso espelho, no Alemão ou no Leblon. O poder devastador da injustiça está exposto, em toda a sua plenitude, no assassinato de Eduardo. Como já disse, há muitos anos, Rui Barbosa, mais atual do que nunca: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.

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