segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Contra-ataque

                                                   O ano que está apenas começando

"Primeiramente, gostaria de esclarecer que este artigo e de autoria da escritora Rossika Darcy de Oliveira e foi publicado na edição carioca do jornal "O Globo" em 15/10/2011."
   
     Às vezes, inesperadamente, a história se acelera. Foi assim em 1968, quando, mundo afora, jovens foram às ruas, pedindo, uns, a imaginação no poder, outros, o povo no poder. Foi assim em 1989, quando caiu o muro de Berlim, levando de roldão o carcomido socialismo real. Tempos em que novas ideias e valores vieram à tona, regenerando tecidos sociais e culturais. Anos que invadiram as décadas que se seguiram.
     2011 está sendo um ano assim. Do Cairo a Tel-Aviv, de Madri a Nova York, a indignação move multidões.
     São pessoas, não partidos, ocupando praças onde ecoa um sonoro “não”, entoado em diferentes refrões. Gente que, afirmando o que não quer, diz, pelo avesso, o que quer. Não querem mais ditaduras.
     A Praça Tahrir deu o exemplo. O mundo árabe ecoou a mensagem primaveril e vai pondo para correr, um a um, ditadores que se acreditavam eternos.
    Mulheres sauditas saem às ruas dirigindo automóveis em desafio à lei que até isso lhes proibia. Além da carteira de motorista, ganham título de eleitoras e o direito de ser candidatas.
    Na Indonésia, maior país islâmico, minissaias e véus se misturam nas praças em protesto contra a violência sexual. Oslo responde atribuindo o Prêmio Nobel da Paz a três mulheres, duas da Libéria e uma do Iêmen, defensoras dos direitos humanos e - coisa rara por lá - que entendem por humanidade os homens e as mulheres. Longe do espantalho fundamentalista, querem liberdade.
    No Brasil não queremos mais a corrupção, que não é mais aceita, como já foi, como fato cultural, o que desonrava nossa cultura e exilava a ética. O movimento Ficha Limpa, inovador e eficaz, nos redime desse estigma.
    Os indignados que acamparam em Madri - e o rastilho está correndo em toda a Europa - não querem mais injustiça. Questionam uma lógica econômica que destrói empregos e direitos sociais, denunciam o banditismo que impregna o sistema financeiro global.
    Em Nova York, americanos ensaiam ocupar Wall Street e chamam de escroques senhores que até ontem eram o símbolo mesmo do poder e do sucesso. Sustentam que é dali, não do Iraque ou do Afeganistão, que provém a ameaça mais clara e iminente aos Estados Unidos.
    Em 2003, Warren Buffet, que entende do assunto, já alertava para o risco de uma “megacatástrofe” provocada pelos derivativos financeiros, “armas de destruição em massa” com o poder de destroçar a economia mundial. Quando essa percepção se espalha pelo mundo, o rei nu perde suas míticas calças de veludo. O que está sendo repudiado como imoral não é só a ordem econômica. É um sistema de valores, ou melhor, um sistema desprovido de valores, que tem o dinheiro como fim e a ganância como princípio, destruidor dos laços de solidariedade que construíram a civilização, contrariando a lei da selva.
    Não importa quantos manifestantes estarão neste sábado em frente à City de Londres ou na Grand Place de Bruxelas, e quantas mais cidades pelo mundo terão aderido ao dia mundial de protesto. A profundidade da indignação não se mede pelo número de indignados. A radicalidade da mensagem que estão mandando quebra o senso comum que teve longa vida e entregou ao mercado e aos políticos — e quão promíscua é a relação entre eles — o direito de decisão sobre o destino de todos.
    Os protestos planetários dão o depoimento vivo sobre a agonia de um sistema político que, contaminado pelo sistema econômico, perdeu legitimidade. Órfãos de seus representantes os manifestantes se representam a si mesmos. Iniciativas debatidas na grande rede deságuam nas praças. Sem a rede não existiria a praça. Mas é a praça que tece a vida real. A rede e a praça são os recursos com que os “99%” contam frente à falência e à cumplicidade dos sistemas econômico e político.
    Fechado em sua lógica, o mundo político não decodifica o enigma das ruas e desqualifica seus atores: arruaceiros, sonhadores que não sabem o que querem, sem programa e sem organização. Desconectados do mundo real, políticos míopes não medem a extensão de seu próprio desastre.
   Os protestos não são um revival de nada. São um fato inaugural. Manifestações de rua são febris e, como a febre, sintomáticas. Podem refluir, mas nada será como antes. Terão sido o rascunho de uma nova agenda de angústias e alegrias humanas, não de perdas e ganhos financeiros. Liberdade, justiça e ética são demandas que sintetizam um novo humanismo. Expressões como bem viver e felicidade, que soavam piegas e fora de moda, ressurgem como esperanças.
   A indignação é uma resposta à procura de sua pergunta. 2011 é um ano que está aénas começando.

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